Monday, January 08, 2007

Lição de Brasil

Por J. R. Guzzo
EXAME A tentativa dos congressistas de elevar o próprio salário é uma verdadeira aula sobre os motivos de o país ter um dos piores serviços públicos e uma das maiores concentrações de renda do mundo

O Brasil recebe, dia após dia, lições muito claras mostrando por que cresce pouco e mal, oferece um dos piores serviços públicos do mundo e agrava a concentração de renda. O último episódio da série foi o aumento superior a 90% que deputados e senadores tentaram dar para seus próprios ganhos. O golpe foi tão descarado que acabou se metendo em dificuldades para ir adiante. A fração decente do Congresso, que vem mostrando uma força política bem superior a seu tamanho numérico, conseguiu bloquear o aumento no Supremo Tribunal Federal, numa ação liderada pelos deputados Fernando Gabeira, Raul Jungmann e Carlos Sampaio -- e agora suas excelências terão de se contentar, talvez, com um terço do que pretendiam colocar nos bolsos. Os deputados que brigam pela moralidade já tinham derrubado em 2005 o presidente da Câmara, Severino Cavalcanti; pegaram agora os severinos disfarçados que presidem e formam as mesas diretoras das duas casas do Congresso. Se pudessem ter feito o que queriam, o Erário acabaria tendo de pagar cerca de 1,8 bilhão de reais, em um ano, para cobrir as despesas totais decorrentes do aumento -- um clássico, sem dúvida, na arte de transformar dinheiro publico em patrimônio pessoal de quem ganha a vida na política.

Cada deputado, com esse aumento, passaria a um salário mensal de 24 500 reais, mais do que ganha um cidadão que exerce o mesmo ofício na Alemanha, na França ou na Inglaterra. Na verdade essa remuneração passaria dos 100 000 reais por mês, com as vantagens, os benefícios e outros anabolizantes que o Congresso foi inventando ao longo dos anos para engordar os ganhos de seus integrantes. Para os senadores, a soma mensal verdadeira chegaria perto dos 150 000 reais. Se isso não é concentração de renda explícita, o que seria? A história não ficaria por aí. Como conseqüência direta do aumento de senadores e deputados, aumentariam também, automaticamente, os salários de 1 059 deputados estaduais e mais de 51 000 vereadores. O motivo disso é uma trapaça chamada "isonomia", pela qual sempre que se dá aumento para uns tem de se dar aumento equivalente para outros. É um bonito princípio, na teoria "republicana" -- serve para garantir a indispensável igualdade de tratamento na remuneração do serviço público. Na prática da vida política nacional, transformou-se num pé-de-cabra para arrombar a porta do Erário.

É só prestar um pouco de atenção naquele número de 1,8 bilhão de reais para ver por que a economia brasileira progride tão devagar, com tão pouco suporte público e de forma tão desigual. Bastam uma pergunta e uma resposta. Pergunta: por que o governo não contrata já, por exemplo, mais 50 000 professores para melhorar a miserável rede pública de ensino, pagando salários de 3 000 reais por mês para cada um? Resposta: porque isso iria custar 1,8 bilhão de reais por ano, dinheiro que os congressistas já teriam pego para si se tivessem conseguido. Pano extremamente rápido, como no Teatro Corisco, de Millôr Fernandes.

Um pacote de 1,8 bilhão de reais não daria, obviamente, para resolver todos os problemas de crescimento do Brasil. Mas é justamente aí que está a marca da maldade. Como nenhuma soma, individualmente, é suficiente para renovar toda a infra-estrutura, eliminar toda a pobreza, melhorar toda a distribuição de renda e assim por diante, quem manda no poder público se sente autorizado a gastar no que lhe interessa. Já que o montante que subtrai para si não vai, sozinho, resolver em definitivo nenhuma das carências do Brasil, cada um tem uma bela desculpa aritmética para só defender o seu. O resultado é que, de 1,8 bilhão em 1,8 bilhão, uma hora acaba se chegando a dinheiro grosso -- talvez 99% de todo o dinheiro público disponível na União, quando se leva em conta que apenas 1% do Orçamento federal, hoje em dia, sobra para o investimento produtivo.

O mesmo raciocínio se aplica à Previdência Social, aos gastos com a folha de pessoal do serviço público, ao aerolula e por aí afora. Cada vez que se fala em fazer algum corte em qualquer dessas áreas, a resposta é sempre a mesma: "Não é por aí". Essa atitude resulta da idéia, firmemente implantada no Brasil de hoje, segundo a qual todo corte de despesa pública, sobretudo na folha de pagamento, é uma aberração neoliberal. Trata-se de um passaporte doutrinário perfeito para vigarices de todos os tipos, sobretudo quando ele é apresentado em combinação com outro artigo de fé para nove entre dez das melhores (e piores) cabeças econômicas da esquerda nacional: o único problema do Brasil é a elite, responsável direta ou indiretamente por tudo que há de errado no país. Desse jeito fica uma beleza. Se só a elite é culpada, todos os demais são inocentes -- estão liberados, assim, para agir como bem entendem, bastando cada um dizer que a elite são os outros. É claro que aí não vai sobrar dinheiro para nada.

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