Saturday, July 22, 2006

Fim do pesadelo

Mauro Chaves
O pior de tudo era a sensação de inexorabilidade. Sentíamonos condenados - como numa tragédia grega - a um destino inelutável. Parecia que não haveria força alguma capaz de se contrapor ao empuxo avassalador da ignorância, aos efeitos perversos do despreparo mesclado de arrogância. Era como se um poder estranho se tivesse apossado das mentes e dos comportamentos, para perpetrar uma brutal inversão de valores: aquilo que fora pregado por mais de duas décadas valia por seu contrário. Os princípios éticos, a decência pública, os escrúpulos, o idealismo, antes cobrados de todos e defendidos com intransigência, tornaram-se objeto de puro escárnio, tal a distância demonstrada entre o dito e o feito, o pregado e o vivido, o prometido e o desprezado - resumindo-se tudo ao traiçoeiramente fingido.
De cima a baixo se impunha a influência demolidora do desprestígio do esforço pessoal do aprendizado. Decretara-se a derrocada do mérito, como critério da seletividade, e sua substituição irremediável pelo compadrio. Valorizara-se ao extremo a capacidade de exercer-se o tráfico de influência, ou de pelo menos admiti-lo sem qualquer resquício de sentimento de culpa. Fora-se com sede insaciável aos potes, com frenesi se abasteceram as quadrilhas - em volumes além da própria capacidade de consumo -, inventaram-se operações mirabolantes para garantir o crônico patrimonialismo em sua versão mais sórdida - ou seja, a apropriação de recursos públicos para a montagem de estruturas permanentes de funcionamento da rapina privada.
Elevara-se como padrão de excelência a quase-lógica, o curso das meias-verdades enganadoras, o mapa do 'como se fosse' no país do faz-deconta. Fizera-se um nivelamento por baixo, com desprezo total à precisão - de linguagem e d e compreensão da complexidade do mundo -, optando-se sempre por aquilo que 'impressiona' mais, que 'faz vista', como se os interesses cosméticos do marketing superassem os da real cidadania. É claro que nesse processo cultura e arte viraram perfumaria de ociosos burgueses - e se tentou 'enquadrar', cerceando, a produção cultural e audiovisual, da mesma forma que se tentou tolher a liberdade de expressão dos profissionais de imprensa.
Desrespeitaram-se as leis de forma sistemática, utilizando-se todos os recursos da assessoria pública para o exercí
cio da burla, da escamoteação, do encontro de brechas e fendas legislativas capazes de inverter os efeitos pretendidos das normas. Permitiuse a afronta direta aos direitos individuais, à propriedade, ao exercício da produção, à liberdade de locomoção e ao trabalho, especialmente no meio rural. Desprezaram-se as atribuições que caracterizam a majestade do cargo de poder maior, de tal forma a destruir a sua preciosidade simbólica, a sua altaneria, o seu decoro.
Usurparam-se obras alheias, atribuíram-se autorias e conquistas de antecessores, sem lhes conceder um mínimo de generoso reconhecimento, a ponto de se apelidar de 'herança maldita' o que fora a base indispensável de qualquer política positiva adotada. Na desvalorização da competência intelectual, com o objetivo de eliminar notórios contrastes com a mediocridade investida de poder, procurou-se demonstrar a não-importância do empenho na aquisição de conhecimento, como se o esforço de aprender fosse apenas uma saída para os menos agraciados com a intuição inata, a capacidade de improviso, o entendimento só de oitiva, próprio de quem até se envaidece com a ojeriza que sente pelos livros.
Adotou-se o assistencialis
mo predatório do esforço, o estímulo ao ganho sem produção, a detonação do orgulho de crescimento das famílias, as quais precisam manter um pacto com a pobreza para sobreviver com a esmola oficial. É aquilo que mais apropriado seria chamar de bolsa da vergonha, da expectativa gorada, da desistência do trabalho produtivo. E no mesmo espírito do 'como se fosse' do país do faz-de-conta, taparam-se mal e porcamente os buracos, aplicaram-se múltiplas gambiarras, inauguraram-se pencas de inutilidades, com estas pretendendo arrematar votos - pois o que não é respeitado sempre pode ser arrematado.
Por sobre tudo a torrencial propaganda oficial, a publicidade desbragada na colocação de cada poste. É claro que alternância no poder é coisa ótima, democrática, que reflete a plena liberdade de convicções e a pluralidade de opiniões numa sociedade. Mas acima do que a lei assegura, como condição de acesso de partidos e candidatos ao poder, é preciso que haja a viabilidade concreta dessa alternância, por meio de uma real competitividade. O jogo eleitoral com resultado prévio fixado era, no mínimo, tenebroso. Por isso, quando o desânimo já dominava os espíritos dos que nada viam além da repetição do ruim, eis que as benditas pesquisas mudam tudo, abrem uma alternativa e, só com isso, já decretam o fim do pesadelo.
Agora, é só acreditar na recuperação dos valores, na limpeza do espaço público,
no respeito às normas legais, no esforço do aprendizado, na escolha segundo o mérito, na correspondência da palavra ao ato, no prestígio da produção e do trabalho, na majestade do alto cargo público, nas instituições da democracia civilizada. Só resta atravessar com confiança o que falta para acabar com esse sonho ruim, acreditando que tudo não passou de um momentâneo, esporádico e acidental mal-entendido de nosso destino, que nem seqüelas haverá de nos trazer.


Mauro Chaves é jornalista, advogado, escritor, administrador de empresas e produtor cultural. E-mail: mauro.chaves@attglobal.net


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